Neste trecho do derradeiro livro continuum de Herberto Hélder, os seus “punti luminosi” poundianos iluminam-se com especial potência sobre um simples arquitecto que desenha uma casa. É preciso ler, reler e concluir que só se pode desejar perceber mastigando pausadamente cada sílaba, como se o almoçássemos, em vez da sopa e do pão desse dia. Não será o projecto e, enfim, a arquitectura pensada “o amor das coisas no seu tempo futuro?”, não será a “casa absoluta” a “casinfância”? Parece agora óbvio, mas não chegaria lá por mim, com todo este esplendor do rigor terminológico. Nunca antes o desenho de uma casa me tinha convocado tão repentinamente este universo de Herberto como o dia em que recebi a encomenda, não muito distante do dia do seu falecimento: poderia ser algo de efémero, especificamente em madeira, - conscientemente não era para um futuro maior que 20, 30 anos -, deveria ser feita em função de uma infância que ainda ia breve e do convívio da família, e finalmente, mas ainda mais importante, a obra deveria ser rápida, muito rápida mesmo, em contra relógio com estes dois últimos “espaço-tempo”.
A consciência da efemeridade não anulava a necessidade vincada de ter no “convívio” da família um “cimento” que trespassava impiedosamente o passado e o futuro, da infância em África às (re)nascidas infâncias , para quem a casa deveria ser. No triângulo em forma de lágrima que encontramos num gaveto de Gemeses, Esposende, em direcção às margens do Rio Cávado, deveriam “caber” então um grande espaço social para toda a família, interior e exterior, e três unidades para pernoite, tudo isso devidamente articulado com a chegada e acondicionamento de alguns carros (a única maneira de lá chegar), e, acrescentaria sempre, com a(s) “infância(s)”, essa representação do tempo, transversal a todos os espaços. Acrescente-se ainda a articulação com todas as condicionantes clássicas da arquitectura, desde os vários compromissos com o lugar, ao diálogo com as regras estabelecidas pelas entidades públicas.
A casa poderia ter dois pisos para libertar o máximo de terreno e deveria ser o mais simples possível de diferentes “construções” convergirem na sua montagem. Desenhou-se então com planta quadrada, de 10x10 m, aproveitando todos os quadrantes da paisagem em redor, fosse pela sua orientação solar, fosse, por exemplo, pela maior vastidão dos bosques a desaparecer de vista a Norte. Este quadrado agarrou-se, através de um pequeno alpendre para um automóvel, sobre o único muro de limite recto do terreno e o único confrontante com um vizinho, a poente, que tem a orientação exacta Norte-Sul. Ao contrário de tantas casas de férias, hostis à vizinhança permanente, havia um (re)conhecimento a priori entre vizinhos. O quadrado coloca-se à mesma distância lateral do muro que a casa do vizinho e só se desloca da posição deste no sentido contrário, no eixo Norte-Sul, abrindo um grande espaço de lazer a Sul, enquanto que a posição da casa vizinha encosta-se ao máximo à estrada, abrindo todo o espaço a Norte para a optimização da produção agrícola. Os solos drenavam mal e faziam o terreno alagar várias vezes ao ano; havia de se fazer as fundações em betão e, enquanto
isso, havia de se encontrar o carpinteiro de estruturas e de se aprofundar o estudo das madeiras, merecedoras de um detalhe especial no projecto.
Para o espaço social, que deveria ser também exterior, reservou-se todo o piso térreo de perímetro sólido: com o “cimento do convívio” fez-se o duradouro betão do embasamento, cofrado em tabuado de madeira de 12 cm. Eleva-se o embasamento das necessárias fundações, até à altura da vedação do espaço exterior. A esta camada do espaço social só se sobreporia uma outra: a verdadeiramente mais efémera e circunstancial dos espaços de pernoite, sobre o quadrado pesado da casa, executada em madeira, também tabuada de 12 cm. O tabuado do embasamento é colocado na horizontal, assim como é o sentido do seu processo de construção, betonado de cima para baixo, líquido viscoso que se acumula e enche a fôrma e se cristaliza para dali não mais sair. Já o tabuado do piso superior é colocado na vertical, colaborando na montagem do material que, ao contrário do betão, o operário vai aplicando o andaime, da esquerda para a direita, de um lado para o outro, de Norte para Sul.
O piso térreo aloja os espaços de produção/serviço da cozinha, da lavandaria e da casa de banho, e todos os outros espaços que, através da colocação de um pilar de betão, se conseguem organizar: a sul, um solário interior prolongado em esplanada exterior, por via de um largo e protegido umbral; a norte, pelo contrário, uma zona de estadia e uma sala de jantar através da projecção de uma bow window. A infância vê realizado o seu desejo de prolongamento protegido para o mundo exterior, encontrando permanentemente essa vocação telúrica, a partir da abertura desse longo painel de janelas. Graças à profundidade e desenho do umbral/alpendre, a abertura de 8 metros de vidro permite ainda assim estar no interior sem o desconforto do vento que, em Gemeses e naquela localização, pode tornar-se perturbador.
Entre a profundidade do umbral a sul e a filigranar bowwindow a norte, situa-se, a nascente, a escada de acesso ao piso superior, também projectada sobre o terreno. No piso superior, dos três quartos, dois são para as crianças ou hóspedes e partilham uma casa de banho e uma varanda a sul. O espaço de acesso aos quartos, acedido pela escada, é um corredor que rasga o edifício no sentido Nascente / Poente - ao contrário do sentido do rasgo Sul/ Norte do piso térreo - e é deliberadamente sobredimensionado para servir de espaço de estar ou trabalhar mais íntimo, como forma de resolver a excessiva colectivização do piso térreo e por não se querer construir um espaço especificamente destinado a essa função.